quinta-feira, agosto 13, 2009

O PROBLEMA DA PECUÁRIA NA AMAZÔNIA BRASILEIRA


Por Jaqueline B. Ramos*

Os impactos ambientais da chamada pecuária industrial, ou pecuária em larga escala, foram alertados pela primeira vez em nível mundial pela ONU em 2006. Neste ano a FAO, agência da ONU para Agricultura e Alimentação, lançou o relatório “A Grande Sombra dos Estoques Vivos: questões ambientais e opções" (Lifestock's Long Shadow: environmental issues and options, em inglês). O documento analisou os impactos ambientais relacionados a toda a cadeia da pecuária industrial. Entre os resultados mais alarmantes estava a conclusão de que a indústria da carne (que inclui todos os seus derivados) é responsável por nada mais nada menos do que 18% do total das emissões de gases causadores do aquecimento global, valor maior que a soma da poluição causada por todos os meios de transporte (13%).

As discussões sobre a problemática ambiental da pecuária não poderiam excluir o Brasil, que atualmente é o segundo maior produtor e maior exportador de carne bovina do mundo. Uma análise mais crítica da relação direta da pecuária bovina com o desmatamento de uma das suas maiores riquezas, a Amazônia, passou a ser inevitável. Em 2008, a OSCIP “Amigos da Terra – Amazônia Brasileira” lançou o relatório “O Reino do Gado”, cujo principal alerta é que “a pecuarização da Amazônia se intensificou de maneira sem precedentes ao longo dos últimos cinco anos e o fenômeno requer uma atenção nova e especial, em quantidade e qualidade, por parte das autoridades governamentais, da cadeia comercial, de instituições financeiras, cientistas e organizações da sociedade civil.” (ver mais dados no boxe).

Os dados já alarmantes divulgados pela “Amigos da Terra” se reforçaram recentemente com um trabalho investigativo realizado pela ONG Greenpeace e consolidado num relatório intitulado “A Farra do Boi na Amazônia”, lançado no início de junho. Em linhas gerais, o relatório alerta sobre a relação direta do desmatamento da floresta com o avanço do gado (ver gráfico) e ressalta o fato de que a carne e couro produzidos à custa de irregularidades ambientais chega a continentes como a América do Norte, Europa e até Ásia.

O documento aponta, por exemplo, grandes frigoríficos exportadores – corporações como Bertin, JBS e Marfrig - negociando gado oriundo de terra indígena e áreas embargadas pelo Ibama por excesso de desmatamento. “Este relatório é fruto de um trabalho de três anos de investigação de oito escritórios do Greenpeace pelo mundo, que mapearam a cadeia produtiva da pecuária do desmatamento patrocinado por grandes frigoríficos exportadores até a chegada aos consumidores dentro e fora do Brasil”, explica Márcio Astrini, coordenador da Campanha Desmatamento Zero Amazônia do Greenpeace, ressaltando que uma ação civil pública impetrada pelo Ministério Pública do Pará contra as atividades ilegais dos frigoríficos reforçou as evidências do relatório.

Governo é sócio no desmatamento: Uma das maiores críticas feitas pelo Greenpeace no relatório é o fato do governo brasileiro investir em grandes companhias do setor pecuário por meio do BNDES. Em outras palavras, mega empreendimentos em conjunto com o governo patrocinam o desmatamento da floresta. “Na verdade, o BNDES tem ações nestas empresas, quer dizer, tem porcentagem no lucro. Após a divulgação do relatório o banco decidiu rescindir o contrato e cobrou explicações sobre as denúncias de ilegalidade”, diz Astrini.

Além da decisão do BNDES, a repercussão da investigação do Greenpeace já proporcionou algumas vitórias. Em meados de junho o Banco Mundial também declarou a rescisão de contrato de empréstimo de US 90 milhões com a Bertin até a empresa apresentar explicações sobre as irregularidades ambientais. E grandes redes de supermercados como Wall Mart, Carrefour e Pão de Açúcar e marcas mundiais como Timberland, Adidas, Nike, Reebok, Hugo Boss, Gucci e Prada exigiram garantias sobre o couro proveniente dos frigoríficos citados no relatório.

“Agora vamos acompanhar os compromissos feitos por estas grandes redes, pressionar os frigoríficos e cobrar uma posição oficial do Governo Brasileiro, que até 20 depois do lançamento do relatório não tinha se pronunciado oficialmente”, informa Astrini.

O papel do consumidor: Não é difícil concluir que a pecuária, associada ao desmatamento ilegal, é uma atividade colonizadora que não tem competidores no mesmo nível capazes de valorizar a floresta em pé. Manejo florestal e serviços ambientais ainda não fazem parte das opções econômicas da Amazônia de forma séria e contundente. Diante desse cenário, quais seriam os caminhos para mitigar o conflito pecuária X floresta em pé?

“O maior desafio é montar uma sistemática de produção pecuária que seja responsável e sustentável em termos de sócio-biodiversidade. Para isso, são necessárias medidas que passam por responsabilizar a produção quanto ao cumprimento da legislação ambiental e trabalhista, implantação de rastreabilidade no rebanho e de melhores práticas que aliem produtividade e conservação Essas são premissas de sustentabilidade que quebram a performance atual de rentabilidade às custas de terra barata e sem cuidados, migratória sobre a floresta”, explica Paulo Gustavo Prado, diretor de Política Ambiental da Conservação Internacional (CI-Brasil).

E é justamente nessa cobrança de critérios de sustentabilidade que entra a responsabilidade do consumidor. “O papel do consumidor é o de sempre exigir sustentabilidade e boas práticas como garantia de conservação do meio ambiente e das culturas tradicionais que existem no norte do Cerrado e na Amazônia”, diz Prado. “Temos um passo a passo no nosso site para o consumidor se informar sobre o que deve fazer para não consumir produtos advindos do desmatamento da Amazônia. Nossa orientação é que as pessoas se informem sobre o problema, conheçam os seus direitos como consumidor e comprem somente das empresas que assumiram publicamente o compromisso de lutar contra o desmatamento”, conclui Astrini.

Saiba mais:

Relatório “A Farra do Boi na Amazônia” e dicas do que o consumidor pode fazer - http://www.greenpeace.org/brasil/amazonia/gado

Relatório “O Reino do Gado” - http://www.amazonia.org.br/arquivos/259381.pdf

Floresta na “pata do boi”

• O rebanho bovino na Amazônia Legal atingiu aproximadamente 74 milhões de cabeças de gado, ou 3,3 por habitante, o triplo da média nacional. No Mato Grosso chega-se a 9,3 cabeças por habitante e em Rondônia, 7,7.

• De cada quatro cabeças adicionais de gado no Brasil nos últimos 5 anos, 3 são oriundas da Amazônia.

• Entre dezembro de 2003 e dezembro de 2006 quase não houve crescimento no rebanho fora da Amazônia Legal, sendo que 96% de todo o crescimento registrado no período no país são oriundos da Amazônia.

• O aumento na produção de carne na Amazônia (estimado em aproximadamente 1,5 milhão de toneladas equivalente-carcaça (designa o peso da carne produzida, com osso ou desossada, dependendo do caso) ao longo dos últimos cinco anos) supera o aumento na exportação registrado ao longo do mesmo período (aproximadamente 1,4 milhão de toneladas equivalente-carcaça).

• Um terço das exportações brasileiras de carne in natura em 2007 é oriunda de exportação direta da Amazônia, notadamente dos estados de Mata Grosso, Pará, Rondônia e Tocantins. Desde 2004 o Pará aumentou sua exportação direta (em peso) em 7800%, Rondônia em 1350%, Tocantins em 150% e Mato Grosso em 360%.

Fonte: Relatório “O Reino do Gado” (Amigos da Terra – Amazônia Brasileira, 2008)

O pesadelo da MP 458

Além dos números alarmantes da pecuária avançando na Amazônia, a floresta sofreu outro duro golpe recentemente. Dessa vez diretamente do Governo Brasileiro, que aprovou a Medida Provisória 458, sancionada pelo Presidente Lula com apenas um veto no final de junho.

A MP determina que 67,4 milhões de hectares de terras públicas na Amazônia serão privatizadas para seus novos proprietários praticamente sem custo e sem a fiscalização do Estado. As áreas ocupadas de até 100 hectares serão doadas. A partir daí e até 400 hectares, será cobrado apenas um valor simbólico de seus ocupantes. As áreas maiores, com até 1.500 hectares, serão alienadas a valor de mercado, mas com prazo de carência de 20 anos. Na prática isso significa misturar posseiros legítimos com grileiros de terras, regularizando a preço de banana e estimulando, no final, ocupações ilegais.

Em suma, a aprovação da MP 458 é um dos piores pesadelos para ambientalistas e ONGs que vem lutando contra o avanço desenfreado do desmatamento da floresta, estimulado pela ambição econômica. Segundo Paulo Gustavo Prado, diretor de Política Ambiental da Conservação Internacional (CI-Brasil), os principais problemas da MP 458 são:

1 - Não é amarrada ao Zoneamento Ecológico-Econômico e não se antecede fortalecendo as Terras Indígenas e as Unidades de Conservação ali existentes como condição prévia;
2 - Não vende, mas doa a propriedade (aos pequenos) gerando paternalismo e pouco apego à terra, uma vez que os beneficiários podem vendê-la na etapa seguinte e ser solicitante em outra área à frente, mesmo como grileiro, servindo de ponta-de-lança para o agronegócio;
3 - O agronegócio, por sua vez, pode comprar, inclusive como pessoa jurídica, e tem prazo curto para revender;
4 - As pesquisas de cadeia de domínio são expeditas e sem a investigação que seria necessária, podendo validar grileiros.


*Publicada no Informativo do Instituto Ecológico Aqualung n. 85 (maio/junho 2009). PDF do informativo aqui.

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