“O vegetarianismo é uma opção ética muito importante para construirmos um mundo mais justo e equilibrado”
Por Jaqueline B. Ramos *
O americano Jim Mason começou a levantar críticas éticas sobre métodos e técnicas de exploração de animais em fazendas de produção no final da década de 60, quando se formava em Direito e trabalhava em Nova Iorque. Membro da quinta geração de uma família de fazendeiros do estado do Missouri, o então recém-advogado chegou à conclusão de que os animais eram criados de uma forma muito diferente daquela que vivenciou na sua infância. Esta percepção despertou o interesse pela pesquisa e busca de alternativas mais éticas de tratamento dos animais criados para fins de alimentação em fazendas de produção. E desde então este interesse não parou de crescer e se tornou, conforme ele mesmo diz, “numa experiência de mudança de vida”. Há 32 anos Mason é um vegano que só aceita opções vegetarianas em situações em que os anfitriões são pessoas conscientes.
Interesses e amigos em comum fizeram com que Mason conhecesse Peter Singer (autor de “Libertação Animal”, considerado o precursor do movimento de defesa dos direitos dos animais) em 1974. A parceria e as pesquisas em conjunto resultaram, seis anos depois, no livro “Animal Factories”. E agora, no início de 2007, Mason e Singer lançaram o resultado de mais um projeto em “A Ética da Alimentação: como nossos hábitos alimentares influenciam o meio ambiente e o nosso bem-estar” (editora Campus, 352 páginas). Resultado de cinco anos de pesquisa, o livro se propõe tanto a apresentar informações éticas como idéias práticas (e muitas vezes simples) de compras e consumo mais conscientes. Para tal os autores acompanharam os hábitos alimentares de três famílias americanas e destrincharam os pouco conhecidos bastidores dos cardápios, que na maior parte das vezes são caracterizados pela crueldade típica de métodos de criação de animais em fazendas de larga produção.
“Nossa maior conclusão neste projeto é que as pessoas devem conhecer detalhes de como suas escolhas alimentares afetam os animais, elas mesmas e o meio ambiente para que a partir daí tenham mais discernimento para mudar suas opções considerando suas próprias conclusões éticas”, diz Mason. Nesta entrevista à Revista dos Vegetarianos, o parceiro de Peter Singer fala sobre a relação do vegetarianismo com a construção de um mundo mais equilibrado, os problemas ambientais agravados por práticas de fazendas de produção e o importante papel do consumidor em prol de modelos mais éticos de alimentação.
Na sua opinião, a ética na alimentação está diretamente ligada ao vegetarianismo e ao veganismo? Para um mundo mais justo em termos de ética com animais e equilíbrio ambiental, todos deveriam ser vegetarianos?
Sim, sem sombra de dúvidas o vegetarianismo é uma opção ética muito importante para construirmos um mundo mais justo e equilibrado. O consumo de carne feito por milhões de pessoas é sinônimo, para os animais, de uma vida inteira de violência em fazendas e mortes cruéis e covardes em abates. O cultivo dos alimentos que compõem a dieta vegetariana afeta um número minúsculo de animais e de forma indireta, como, por exemplo, insetos ou pássaros que possam vir a ser impactados dentro do processo natural em produções orgânicas de soja. Além disso, se caracteriza pelo uso de menos terras e fontes energéticas, o que é muito importante de ser considerado.
O livro “A Ética na Alimentação” apresenta visões da chamada ciência do bem-estar animal, o que segundo alguns ativistas de direitos dos animais vai contra a idéia do abolicionismo lançada por Peter Singer em “Libertação Animal” no ano de 1975. Você poderia comentar esta crítica?
Não posso falar pelo professor Singer, mas a minha visão em relação a esta controvérsia é a seguinte: alguns ativistas trabalham com o foco de que a única saída é o público em geral adotar, num curto prazo, uma dieta vegana. Diante do mundo de hoje, acho que esta é uma expectativa pouco realista quando temos como objetivo reduzir substancialmente o consumo de produtos advindos de fazendas de produção e, consequentemente, diminuir o sofrimento de milhares de animais.
Minha posição de hoje, como sempre foi, é a da adoção do veganismo em respeito aos animais. Aqueles que acham que a dieta vegana representa uma mudança muito drástica no seu dia-a-dia podem optar pelo vegetarianismo. E aqueles que acham que o vegetarianismo ainda é muito difícil podem fazer refeições sem carne sempre que for possível, estabelecendo, por exemplo, metas de número de refeições vegetarianas por semana. Além disso, há sempre a opção de evitar produtos oriundos das fazendas de produção.
O que quero esclarecer é que esse ponto de vista não quer dizer que eu ou o professor Singer tenhamos mudado de opinião em relação à covardia da exploração dos animais. Estamos apenas tentando usar argumentos diferentes com o objetivo único de atingir e sensibilizar um número maior de pessoas e com a esperança de influenciá-las mais a fundo em prol de mudanças no hábito cultural de comer carne. Para o argumento puro “seja vegano”, as pessoas em geral rebatem afirmando que simplesmente não conseguem viver sem carne. Portanto, parafraseando o filme “O Poderoso Chefão”, queremos fazer uma oferta ao público que ele não terá como recusar.
Além das questões éticas em relação aos animais, no livro vocês destacam os impactos do hábito alimentar onívoro no meio ambiente. Quais são os principais problemas ambientais causados pelo modelo exploratório e antiético aplicado aos animais com o objetivo de produção de alimentos em larga escala?
Destaco três problemas principais e explico cada um. Primeiramente tem a perda de biodiversidade. Florestas, matas ciliares e outros importantes ecossistemas têm muitas de suas espécies extintas no processo de prover alimentos para apenas uma: o homem. Sem contar que a dieta onívora requer aproximadamente sete vezes mais terras para produzir a mesma quantidade de nutrientes que a vegetariana.
O segundo problema que destaco é a poluição. Os animais produzem muitas fezes e urina, o que torna o solo das criações insalubre e com alto potencial de poluir o ar e cursos de água na sua proximidade. Esta concentração de excremento gera dióxido de carbono e metano, que são gases do efeito estufa. De acordo com um recente relatório da FAO (Food and Agricultura Organization of the United Nations), granjas industriais e criações de animais em fazendas estão entre os principais fatores que agravam os mais sérios problemas ambientais.
A terceira problemática é o gasto de água e energia. A agropecuária consome uma quantidade muito significativa das fontes de água e energia na expansão de pastos, na produção de fertilizantes e outros aditivos químicos e na operação das fazendas de produção e de abate. Uma fração disso é suficiente para alimentar o mesmo número de pessoas num regime de dieta vegetariana.
Quando falamos em ética na alimentação, qual seria a forma mais prudente de lidar com tradições culturais caracterizadas por exploração de animais? Em termos filosóficos e práticos, qual é a diferença entre comunidades tradicionais e a sociedade moderna no modo como os animais são tratados e no tipo de comida consumida?
Nas comunidades tradicionais e tribais, os animais criados com o fim da alimentação eram respeitados – e até cultuados, em alguns casos. Estas sociedades se viam intimamente ligadas aos animais, os reverenciando como seres especiais, detentores de poderes que os homens não tinham. A sociedade moderna deturpou essa visão. Não há mais o respeito pelos animais e se banalizou o conceito de que eles só têm valor quando são úteis e servem aos homens. O resultado é uma alienação total em relação aos animais e ao mundo natural, que tem como conseqüência um mundo mais triste e até mais doente.
Qual é o papel dos Governos, dos movimentos ativistas e dos consumidores em geral no processo de mudanças de métodos de produção injustos e antiéticos com os animais?
Ao Governo cabe a proibição de métodos de confinamento de vitelas e de granjas industriais de porcos e galinhas, a inibição da produção e uso exacerbado de produtos químicos, como hormônios que aceleram o crescimento, e outros recursos usados em fazendas de produção que são prejudiciais aos animais, ao meio ambiente e, consequentemente, à nossa própria saúde. É necessário também ter um controle de todo o processo, da criação no campo ao rótulo da embalagem, com o objetivo de disponibilizar para o consumidor mais informações sobre fontes e métodos utilizados na cadeia de produção de cada alimento que leva para casa. Os ativistas devem ser os cães de guarda, constantemente investigando, pesquisando e monitorando o Governo e as indústrias para verificar se estão respeitando as regras.
Já os consumidores devem exigir mais informações sobre todos os alimentos que compram nos mercados. Ligar ou escrever para os setores de atendimento ao cliente dos fabricantes pedindo esclarecimentos e maiores detalhes sobre os produtos é uma boa prática e pode contribuir muito. A atuação do consumidor é muito importante para a criação de um cenário onde as grandes fabricantes de alimentos sejam transparentes e não tenham nada a esconder.
Como está o progresso na regulamentação dos métodos de criação de animais usados em fazendas de produção? Existe algum país que esteja mais avançado no controle e na aplicação de métodos mais éticos?
Há um progresso significativo na União Européia, onde os métodos de confinamento em granjas, a indução artificial de crescimento com aplicação de medicamentos e outros excessos cometidos em fazendas de produção já são proibidos por lei ou estão em vias de serem regulamentados e banidos. Nos Estados Unidos uma lei proibindo especificamente o método de confinamento de porcos em granjas industriais já foi aprovada na Flórida e no Arizona, mas não temos leis nacionais de controle de fazendas de produção como nos países europeus. A União Européia hoje pode ser considerada a precursora na eliminação de práticas e artifícios já provados como antiéticos aplicados em fazendas de produção.
A primatologista britânica Jane Goodall afirma que se as pessoas simplesmente não comprarem produtos obtidos a partir de crueldade com animais, os métodos de produção antiéticos serão forçados a mudar. Qual é a relação desta idéia simples, e ao mesmo tempo complexa, com a Ética na Alimentação? Mudanças a favor dos direitos e bem-estar dos animais dependem de atitudes diárias dos consumidores?
Sim, este é exatamente o ponto de vista que queremos passar no livro. Não confiamos no Governo, que é altamente influenciado pelas grandes corporações de agribusiness, para o desenvolvimento e aplicação de leis mais rigorosas nesta área. Nós acreditamos que os consumidores são os atores mais fortes em prol de mudanças nos métodos e nas condições em que os animais são criados em fazendas de produção. Mas para tal precisamos primeiramente informar e fazer esclarecimentos para este consumidor, que muitas vezes acredita na falsa idéia vendida de que nas fazendas os animais são criados com as melhores tecnologias e são muito bem tratados, tendo muito conforto. Essas mentiras continuam sendo anunciadas em rótulos de embalagens de carne, leite e ovos e daí vem a dificuldade de divulgar abertamente e fazer com que as pessoas acreditem nas informações reais, que são bem mais desagradáveis e duras para se encarar.
Há evidências de que estratégias de mercado baseadas em exigências éticas mais rigorosas dos consumidores têm dado certo. A gigante de fast-food MacDonald's já adota há alguns anos alguns critérios socioambientais para escolha de seus fornecedores. O Burger King, o segundo na liderança de fast-food, recentemente começou a fazer o mesmo. A Smithfield Foods e a Cargill, as duas maiores produtoras de carne suína dos Estados Unidos, já anunciaram planos de interromper a prática de confinamento de porcos. Embora nenhuma dessas grandes corporações admita publicamente, estas mudanças foram feitas por conta da crescente pressão de um consumidor mais consciente, que ficará cada vez mais crítico em relação às práticas covardes aplicadas com os animais nas fazendas de produção.
*Entrevista publicada na edição n. 9 (junho 2007) da Revista dos Vegetarianos (editora Europa).