por Jaqueline B. Ramos*
Todo mundo sabe que animal silvestre não é bicho de estimação, que nasceu para viver na natureza, no seu habitat, e não dentro da casa de pessoas como artigo de colecionador, peça de decoração ou brinquedo diferente para as crianças. Infelizmente esta afirmação não é tão óbvia quanto imaginamos e atualmente ainda existem pessoas que compram aves, pequenos primatas, felinos, répteis, entre outros animais, com a rotulagem de “bichos exóticos” e os levam para casa, esperando que eles se comportem como cães ou gatos, ou seja, como um animal de companhia, ou estimação (pet).
A principal e mais grave questão levantada com esta prática é o total comprometimento da saúde e da qualidade de vida do animal selvagem dentro de uma casa ou apartamento, resultando em graves seqüelas físicas e emocionais (doenças, comportamento anormal, estresse e, em alguns casos, até depressão). A criação destes animais sem a devida informação especializada é sinônimo de problemas sérios para os bichos, pois, além de estarem fora de seu habitat natural (de onde não deveriam ter sido removidos), podem não ter todas as suas necessidades atendidas. Sem contar o fator perigo para homens e animais, por conta da possibilidade de transmissão de doenças ou de possíveis acidentes causados num ato normal de selvageria do animal.
Os animais silvestres não passaram pelo processo de domesticação de gatos e cachorros para se adaptarem ao “estilo de vida humanizado”. E nem deverão passar, pois eles mantêm seu comportamento natural para o qual evoluíram milhares de anos. Qualquer ambiente diferente ao natural significa perda de enraizamento e referência, desequilíbrio fisiológico, indução de estresse e má qualidade de vida.
“O homem levou cerca de 10 mil anos para domesticar cachorros e cinco mil anos para os gatos e hoje estes são classificados como animais de companhia devido a este histórico de compatibilidade com o meio ambiente do homem. Mas mesmo assim muitos cachorros e gatos ainda enfrentam problemas de bem-estar devido à falta de informação por parte de seus donos em relação às demandas e características de seu comportamento e fisiologia”, explica a Dra. Anabela Pinto, professora de ética e bem-estar animal da Universidade de Cambridge, Inglaterra. “Imagina agora o que é tentar criar um animal silvestre como pet?”.
Segundo a professora, outro problema atrelado à prática de se ter um animal silvestre como pet é o seu abandono. Depois que a pessoa se dá conta que é impossível (e até perigoso) conviver com um silvestre, é comum prendê-lo numa gaiola ou até abandoná-lo na rua, sem qualquer cuidado ou critério. E se a pessoa é um pouco mais consciente e procura os órgãos oficiais para doar o animal, se dá conta que não há abrigos ou santuários suficientes para cuidar desses animais, que, na maior parte das vezes, não têm mais condições de serem devolvidos à natureza e ficam condenados à vida em cativeiro.
Outra questão atrelada à “mania” de se ter um bicho exótico como pet é o fato de que a captura ilegal da natureza já é apontada como uma das principais causas da ameaça de extinção enfrentada por algumas espécies brasileiras. É o caso, por exemplo, da ararajuba (ave) e do sagüi-de-duas-cores (primata), animais da Amazônia classificados como ameaçados e comumente comercializados de forma ilegal.
A problemática do tráfico de animais
Além de todos os problemas já destacados e entrando no campo da criminalidade, o comércio de animais silvestres também tem ligação direta com um problema muito sério: o tráfico. A legislação brasileira hoje permite a criação comercial de algumas espécies de primatas, répteis e aves, que são “marcados” com anilhas e possuem toda a documentação para controle de sua origem legal (nascimento em cativeiro). Mas isso é muito bonito na teoria, porque na prática grande parte dos criadouros comerciais funciona como fachada para o esquema do tráfico, que retira sem dó nem piedade os animais da natureza. Dados da Polícia Federal demonstram que cerca de 80% dos criadouros comerciais são parceiros de quadrilhas de traficantes de animais.
“Nem sempre a pessoa que adquire um animal silvestre dentro de um criadouro ou pet shop vai ter 100% de garantia que esse animal tem uma procedência legal. O traficante pega os animais na natureza, os introduz nos criadouros, eles ganham nota fiscal e marcação falsas e são colocados no mercado”, conta Carlos Eduardo Tavares da Costa, agente de Polícia Federal que trabalha com a repressão de crimes ambientais no estado de Santa Catarina.
Segundo o policial, para resolver este problema é preciso muito investimento em educação, para que as pessoas não alimentem o mercado comprando animais silvestres, e na parte administrativa, para a fiscalização ser mais rigorosa. “Isso para não chegar na outra ponta, na parte criminal, que é onde atuamos. Nesta fase os animais já estão sofrendo e na maior parte das vezes não há abrigos suficientes para alocá-los ou recursos para programas de reintrodução na natureza”, ressalta Carlos Eduardo.
O tráfico de animais silvestres é o terceiro em movimentação de dinheiro no mundo, atrás somente do de drogas e armas. E o Brasil, país detentor de uma das maiores biodiversidades do planeta, infelizmente tem um papel de destaque neste mercado. Estima-se que o país é responsável por cerca de 15% do mercado ilegal de animais silvestres no mundo, tendo 400 quadrilhas organizadas realizando a captura e tráfico - sendo que 40% possuiriam ligações com outras atividades ilegais.
Devido à falta de informação e maiores esclarecimentos, algumas pessoas acabam adquirindo animais silvestres no impulso de ter um “bicho diferente em casa”, achando, erroneamente, que eles se comportarão como gatos ou cachorros. E também não se dão conta que este consumo sustenta toda uma rede de ilegalidade e puxa uma série de problemas ecológicos e ambientais.
Pássaros nasceram para voar, macacos vivem nos galhos das árvores e felinos percorrem dezenas de quilômetros por dia. “Para um animal silvestre, a vida em cativeiro, por mais confortável que pareça, é a negação de toda a sua natureza. As adaptações pelas quais eles passaram por milhares de anos permitem que eles vivam nas condições ecológicas do ambiente em que se inserem. Tirar o animal desse ambiente é sinônimo de indução de sofrimento”, conclui Dra. Anabela.
Lista oficial de pets exóticos – bom ou ruim?
A atividade comercial de animais silvestres no Brasil é legalizada. O Código de Fauna (Lei 5197/67) permite a criação de animais silvestres e cria a figura de criadouro registrado. A Lei de Crimes Ambientais (9605/98) criminaliza a venda, a compra e a posse de animais silvestres sem autorização. O resultado disso é a oferta aberta de venda de diversos animais das mais variadas formas, estando tudo dentro da lei.
Mais recentemente, em 2007, o Ministério do Meio Ambiente baixou a resolução Conama 394, que estabelece os critérios para a determinação de espécies silvestres a serem criadas e comercializadas como animais de estimação. A intenção da resolução é atualizar a lei para o mercado de pets, estabelecendo critérios específicos e eliminando brechas decorrentes de seu conteúdo genérico atual.
Para colocar em prática a resolução, o Ibama preparou uma proposta de lista que restringe o número de espécies que poderiam ser comercializadas – se chegou a cerca de 30 animais, entre aves e répteis. Mas pressões financeiras e políticas estão dificultando o processo e a listagem ainda não foi colocada em prática.
Na época do lançamento da lista se discutiu bastante o quanto valeria a pena regulamentar o comércio de silvestres criando uma listagem, quando o ideal é não ter a comercialização dos animais. Tudo isso foi questionado inclusive dentro do próprio Ibama.
“O comércio de animais silvestres não tem se mostrado como uma solução para o tráfico. Pelo contrário, muitas vezes os criadouros e comerciantes podem servir de fachada para a atividade ilegal, ou são seus principais fomentadores”, explica Vincent Kurt Lo, do Ibama SP. “Além disso, enfrentamos problemas de controle com o limitado quadro de servidores e parcos recursos, não dando conta de todas as fiscalizações e verificações em campo necessárias.”
Segundo Vincent, a lista de animais é válida se for extremamente limitada e específica, permitindo a comercialização de poucas espécies silvestres como pets. Em vez de encorajar que as pessoas levem animais para casa, o analista acredita que o ideal é incentivar as pessoas a irem até os ambientes naturais somente para observá-los.
Diante de tantas implicações e questionamentos, a única certeza em torno do mercado de animais silvestres é a de que ele não deveria existir. A tentativa de oficializar o comércio pode visar um maior controle, mas o fato é que lugar de animal silvestre é na natureza. A captura de uma vida pelo homem para ser um pet é apenas um ato de capricho, passando longe da necessidade e do princípio ético de que toda vida deve ser respeitada.
Campanha “Silvestre não é pet”
A Sociedade Mundial de Proteção Animal – WSPA Brasil lançou em outubro a campanha “Silvestre não é Pet”, que conta com um vídeo-documentário de 30 minutos sobre a importância de não se manter animais silvestres como pets. O vídeo é narrado sob o ponto de vista da vida dos animais e mostra exemplos de casos de maus-tratos (mutilações, doenças físicas e psicológicas sofridas pelos animais que foram retirados da natureza) e como muitos deles são condenados a viver para sempre em cativeiro, tudo resultado do comportamento egoísta do ser humano para suprir um capricho.
O vídeo está sendo exibido em escolas, universidades e eventos por todo o país e pode ser assistido no site da organização, no endereço
http://www.wspabrasil.org/latestnews/2010/Documentario-Silvestre-nao-e-PET-discute-posse-de-animais-silvestres-fora-da-natureza.aspx .
*Reportagem publicada na edição n. 52 (fevereiro 2011) da Revista dos Vegetarianos
Um comentário:
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